12 de novembro de 2016

Barry Guy, Marilyn Crispell, Paul Lytton “Deep Memory” (Intakt, 2016)


É uma categoria, a da memória profunda, que se identifica ao nível da memória dos sentidos ou da memória involuntária. Nem por acaso, o primeiro tema deste novo CD de Guy, Crispell e Lytton, após “Odyssey” (2001) e “Ithaca” (2004), chama-se ‘Scent’ e surge informado por aquele tipo de repentismo capaz de alterar a direção do vento numa planície e polvilhado por melodias saídas de um lanho em terras andaluzas, quase se pressentindo pelo ar as fragrâncias da alcaravia, do alecrim, do cravo e da canela. De modo igualmente sugestivo, se de facto desviarmos as atenções de “Phases of the Night” (um disco que o trio viu ser lançado em 2008 e que, de certa forma, não se alinha com estes três), encontramos mais à frente ‘Return of Ulysses’, o que quer dizer que, mais do que a Homero, se dá mostras de regressar a Joyce, que em “Ulisses” disparava o gatilho do exotismo e do erotismo com uma canção como ‘In Old Madrid’, com andamento marcado a castanholas e aroma a Peau d’Espagne colado a cada palavra. 

Irlandês, como Joyce, o pintor Hughie O’Donoghue serviu de estro a Guy, que escreve: “[Os seus quadros] São um ato emocional sob uma perspetiva histórica”. Há, aliás, uma frase de O’Donoghue acerca do seu próprio trabalho que se poderia aplicar às composições de Guy: “Pintar é como fazer arqueologia ao contrário.” Numa entrevista ao site da Academia Real Inglesa, diz: “Na minha obra nunca há um motivo só para as coisas serem como são. Suponho que procuro a intensidade na cor para a fazer equivaler à intensidade do sentimento que a memória desperta.” É uma força de que Guy, Crispell e Lytton não abdicam. Escuta-se ‘Dark Days’, por exemplo, e imagina-se uma cidade reduzida a escombros, tiros e gritos, execuções e explosões. Quando O’Donoghue criou uma série de quadros inspirado pela Primeira Guerra Mundial, afirmou: “As pessoas pensam que a memória é estática, mas não é. Se não recordarmos estes acontecimentos de há 100 anos estamos fadados a repeti-los.” Também a música de Guy vem lembrar que do mundo não se espanta jamais a luta entre o bem e o mal – e que o mal às vezes vence.

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